MAFALDA SANTOS
28.01.2006


"Too Loud a Solitude"


Sozinho, em Madagáscar. Tenho lá um livro; tenho lá um livro. É extremamente incerto tudo que se segue. Neste discurso não tenho lugares vagos para certezas, de estar completo de dúvidas. Tenho um livro sozinho em Madagáscar; não sei como foi lá parar, nem como o poderei ter lá depositado.

Madagáscar.

Do livro de Bohumil Hrabal, “Uma solidão demasiado ruidosa” na sua tradução portuguesa, pediu-se emprestado o título para esta exposição de Mafalda Santos, agora Mad Woman in the Attic.

Apartada das discussões que se geram em torno dos temas da literatura e dos assuntos do livro (apartada mas não desligada) voltamos à arrumação, à esquematização de elementos individuais de um sistema ou campo no objecto de uma construção (carto)gráfica. Temos a novidade de este trabalho não tratar de um campo social, não usar nomes reais do local Ambiente de Trabalho, não ser referente a um plano. Aqui somos sempre obrigados a supor um centro. Embora, enquanto conceito, origem nunca tenha estado ausente, os discursos anteriores obrigam-me a fazer a salvaguarda, o que se afigurava então era a completa impossibilidade de localização exacta da autora, inerente à estrutura do trabalho estava mesmo presente a ideia da sua repetição no mapa. Aqui temos Mafalda Santos, indivisível, como um centro, e somos convidados a fazer todo o percurso de forma a obter o seu acesso; telefonar, entrar, subir as escadas, entrar mesmo e ver. O trabalho é feito na medida de dentro, vemos um mapa, construído emocionalmente a partir das referências sensíveis, depuradas a partir de uma lógica de pura causalidade pessoal e interior (ao contrário de social e exterior, nos anteriores trabalhos) e causa choque o poder ser observada a mesma inintencionalidade, ou insondabilidade, da regra. Prerrogativa da arte, não pretender ser dedutiva: o choque não precisa de ser visto de forma redutora, mas como insidia de uma discussão ainda presente e contemporânea.

De uma perspectiva mais fundada na proximidade, tratamos de um trabalho de reprodução de uma estrutura mental do processo da aprendizagem e assimilação de referências através da literatura, de uma bibliogeografia de um campo cultural individual. Não nos esquecemos que a nossa memória é dinâmica; censura, corrige e reposiciona. “Too Loud a Solitude” é um momento efémero da psique da autora; amanhã ou no próximo livro, hoje, tudo será diferente. O problema da ciência com o fenómeno da consciência é precisamente a dificuldade da obtenção de mapas, de estruturas de previsibilidade que nos permitam, sabendo onde está, observar o objecto. Parece-nos que o facto de sermos sujeitos da regra nos impede de olhar para o verbo e saber exactamente a que acção estamos constrangidos, como sistema não temos acesso cognitivo ao nosso princípio e, como a cronologia não é uma ciência, não é exequível utilizá-la em detrimento dessa ausência; sem ferramentas precisamente alfabéticas, ficamos com um vento do qual podemos fazer apenas (em arrastamento) uma representação de um instante nosso. A ligação às obras anteriores é neste ponto consubstanciada, já que eles eram “a representação de um pormenor e um momento que vive sempre na ameaça de logo deixar de ser assim”. Também neste ponto o “choque” e a discussão hodierna sobre a universalidade dos sistemas de medida uma vez que, sendo assim tão comparáveis e sujeitos à subjectividade os nossos diferentes níveis de ligação, ergo organização e compreensão do real (endógeno e exógeno) fica levantada a questão epistemológica da validade de um conhecimento que parte da imposição da nossa regra à organização de todos os sistemas apreendidos como fora dela.

Rente, temos a citação de Hrabal e a invocação do fantasma de Haňťa; o concentrador de livros. Não é inocente; nesta sala de Mafalda Santos não temos mais do que a criação de um volume, referenciado, cotado, no qual nos é sempre inacessível o texto. Os livros são usados como matéria-prima do construtor; acontece no instante, a despeito de conteúdo e intenção, colaborarem entre si na expressão de um retrato. A personagem central do livro criava cubos de papel aglomerado, criando uma unidade temática através de uma criteriosa selecção de títulos e de uma fenomenal prensa mecânica. Menos violento, invocando-os sem a necessidade de os destruir, o trabalho presente inverte a ideia da utilização de títulos na construção de um mapa mental da experiência literária de um autor, definindo o negativo da solidez impenetrável dos cubos de Haňťa, quando permite o convite e supõe a entrada do espectador no labiríntico volume das suas referências cruzadas.Dentro, na solução do trabalho, não podíamos escapar a Borges e à sua Biblioteca ab aeterno, a citação da citação, dos volumes eternamente repetidos em si e entre si, da geometrização do universo do livro. No volume e na textura revela-se a irregularidade do sistema, zonas dinâmicas de actividade febril, tensões concordantes ou protestantes entre grupos determinados, espaços vazios recusando conteúdos.

Dentro deste interno a literatura vive; convola-se e convolve-se, reescreve-se na constante redefinição das proximidades e promiscuidades, na suspeita de conjuras secretas entre os fantasmas dos escritores sempre desdobrados (para dentro) em títulos e personagens.

Desta ideia, Madagáscar, porque tenho lá um livro isolado, sem ponte ou ligação alguma ao continente. Há anos que me persegue (nem sempre com a mesma insistência) a ideia de um livro lido (ou sonhado) que me impressionou tremendamente. Guardo apenas a memória emotiva do impacto que a leitura teve em mim, uma noção vaga do formato do objecto (era assaz pequeno, talvez oitenta páginas) e uma ideia do seu conteúdo tão parca e fantástica que, à excepção do facto de ter essa ilha como palco, me envergonha reproduzi-la aqui. Há anos que pergunto e indago, quando tenho tempo percorro a costa do continente nos locais onde pressinto a ilha fantástica. Algum barco que passe, algum viajante que venha a quem possa inquirir sobre um livro esquisito. Um livro que, por algum acaso e em algum momento, perdeu o interesse no contacto com os habitantes do mundo conhecido e vive hoje num espaço não cartografado, tendo-me deixado com o seu improvável fantasma para ser famoso somente dentro de um reduzido círculo de loucos exploradores. Apesar de toda a ciência, da actividade febril de centenas de milhar de fazedores de mapas, resistem-nos ainda lugares assim. E você, sabe de algum livro em Madagáscar?

José Roseira







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